quarta-feira, 17 de junho de 2009

Euclides rima com rap?

Mas quem vai acreditar neste depoimento?
Dezessete de junho, o dia começa, graças a Deus, sem contratempo.
Como diria Mano Brown: “Forest Gump é mato! Prefiro uma história real. Vou contar a minha.”
Na minha história eu sei contar porque eu gosto de rap. Eu curto rap porque quando eu ouço as batidas, parece que eu tô ouvindo alguém me chamar. Tinha vez que eu andava na calçada do centrão de São Paulo e escutava como que alguém chamar meu nome... sabe o que era? Um pandeiro e dois caras de cabeça-chata fazendo desafio no meio da rua, tocando embolada e improvisando. Nossa! O baguio é loco, mesmo! Na real, eu gosto demais de artista de rua, mas muitas vezes passava reto, embalada na pressa da capital chuvosa; mas nunca teve nenhuma vez que eu tenha passado reto quando eram dois emboladores. E já vi grandes artistas pelas ruas.Teve um que fez o povo chorar quando improvisou um verso pra mim e minha mãe uma vez. Ele falou da gente ali e lembrou da mãe dele que já tinha falecido e chorou no meio do verso, vixe! Arrepia na hora e choro toda vez que lembro. O cara era artista de verdade, usava a arte pra contar histórias reais, tipo a sua.
Na minha história, eu gosto do rap porque gosto do repente, do aboio, do jogo de improvisá. Sim, gosto de rap estrangeiro também, mas não é tudo. A parada chama ritmo e poesia, portanto pra gostar, é preciso saber apreciar poesia pelo menos. Eu já fui boa aluna na escola e gosto de poesia. O rap é mágico porque faz gente que nunca foi considerado tão bom aluno assim, criar suas próprias poesias e contar histórias reais.
As histórias reais dão mais ibope. Outro dia tava lendo que uma galera tá estudando na academia essas paradas aí sobre o fascínio do povão (tô chamando de povão todo mundo que assiste essas merda, mas pode ser chamado de Zé Povinho também e pode ter qualquer classe social e qualquer origem étnica) por esses programas que contam histórias reais de crimes, ou livros de repórteres, ou Big Brother, todas essas coisas que “dão uma certeza” ao espectador: isso aí é verdade!
A verdade? Vixe! Os filósofos estudam isso aí desde muito tempo. Um dia arrisquei perguntar pra uma criança, amiga minha e muito inteligente: Ana Terra, o que é a verdade?- ela respondeu: “A verdade é segredo.”
O que é verdade e o que é mentira, qualquer criança sabe. O que acontece é que temos essas duas tendências dentro da gente diante da verdade: querer encará-la de frente. Querer muito. Ou desejar fugir dela com desespero. A arte é capaz de admitir essas nossas duas tendências humanas.
Euclides da Cunha era um cara franzino por fora, mas homem o bastante pra encarar a verdade de frente. As verdades dele eram coletivas, muito maiores que sua própria história, com sua mulher, Ana.
Pra mim é meio difícil de entender essas paradas aí de honra, de traição. Porra! Traição é uma palavra que eu não entendo. Tipo, tem os caras que são os heróis da pátria e os caras que são os traidores da pátria. Qual a diferença? Todo ser humano não deveria ser maior que qualquer pátria? Aí tem também, nos romances românticos e até nos realistas (aí está Dom Casmurro que não me deixa mentir sozinha!) aquelas histórias de traição. Capitu traiu Bentinho? Luiza traiu o marido com o almofadinha do Basílio? Pois é, Machado e Eça de Queirós sabiam o que estavam fazendo: povo adora novela. Novelas são histórias de amor, traição, morte. Aí os caras aproveitavam e nas personagens romanceadas, colocavam um monte de defeito que qualquer cara e qualquer mina na rua tem. Pronto, taí romance realista.
Mas aí vem o Euclides. Encara um massacre em Canudos. O cara é um militar. O dever de um militar é defender a pátria, a bandeira da sua terra, da sua gente. E o cara vê a sua gente pobre e faminta e fanática cair lutando.
Porra, não era um militar também o cara que ordenou o massacre no Carandiru? Não eram militares os que mataram na Candelária, em Carajás, nas favelas do Rio, de São Paulo... -Vixe, desfiar o rosário de massacres é foda!- Mas no entender de Euclides, esses caras não são militares. No entender de Euclides, o dever de todo professor, todo militar, todo rapper, todo poeta, todo escritor, todo repentista, todo beato, todo ator... é contar uma história real. A sua, a de sua gente.
Que pena, Euclides! Que pena Mano Brown! Que pena, Patativa! As nossas histórias e da nossa gente são cheias de sofrimento e morte.
Na minha história eu sei contar porque eu gosto de poesia. Poesia é aquele jeito encantado de falar da dor. A dor mais funda do ser humano, sobe na voz do poeta e desprende. Clara e salgada, cabe em um olho e pesa uma tonelada.
Quem vai acreditar no seu depoimento, Euclides?
Quem vai acreditar no meu?
O Rap do Cavalo Alado de Euclides da Cunha sobre o Morro da Favela é só minha homenagem humilde aos poetas do povo.

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